terça-feira, 3 de março de 2015

Capítulo 3 - O Primeiro Dia

Capítulo 3 - O Primeiro Dia


Após o choque do primeiro encontro com a família de seu tio, da reação desproposital de sua prima Catherine e do entusiasmo contagiante de sua tia Ruth, Renan sentia-se perdido. Não estava acostumado com tais demonstrações de sentimento. Seu pai era muito polido, tratava-o com carinho e respeito, mas nunca chegara ao extremo nas relações pai e filho.
O ambiente ao qual agora vinha a conviver era completamente diferente do que vivera anteriormente. O quarto que lhe fora destinado era, sem exageros, muito aquém do que pudera imaginar. Amplo e bem iluminado, as paredes revestidas de papel azul claro, a mobília de carvalho estilo Luiz XIV, francês, com ornamentação extravagante, a cama de dossel com entalhes de anjos na cabeceira, tudo fazia-o crer que estava na época errada e no lugar errado.
 Renan foi até a janela e afastou as cortinas de tafetá branco. Ficou quase uma hora apreciando a paisagem e a mudança de tonalidade das folhas das árvores enquanto o sol mudava de posição em sua eterna vigilância das horas. Não entendia muito de mulheres. - pensou ele. Depois da morte da mãe, seu pai não quis se casar novamente e as garotas da escola lhe eram indiferentes. É claro que namorara uma ou outra menina, mas nunca entregou seu coração a nenhuma delas.
 Uma batida na porta freou seus pensamentos.
- Com licença Renan. - tio Vicente estava bem a vontade de terno bege e gravata cinza. - Sua tia pediu para avisá-lo que o almoço será servido no terraço, próximo aos jardins, daqui a cinco minutos. 
- Obrigado. Não vou me demorar. Já guardei minhas coisas. - respondi querendo parecer educado.
- Espero que tenha gostado do quarto. Confesso que não tive nada a ver com a escolha. Tudo obra de sua tia. - o tio parecia estar se desculpando.
- É um ótimo quarto. - respondi. E como ele parecia não crer em minha resposta acrescentei que não poderia ter escolhido melhor lugar e a vista era maravilhosa. Meu tio sorriu e deixou-me só novamente.
Chegara a hora de encarar sua nova família. Renan não via a hora de sair e conhecer a cidade. Poderia comer um hambúrger e tomar um refrigerante numa lanchonete, mas teve que se sujeitar a primeira refeição com pessoas que nada tinham a ver com ele a não ser os laços familiares.
 Desceu as escadas sem pressa. Virou a esquerda, atravessando a sala até avistá-los numa pequena mesa retangular de madeira escura e toalha branca. Ao menos era ao ar livre e Renan poderia respirar mais aliviado. Os tios estavam sentados um em frente do outro e sua prima, de cabeça baixa, ficara com a cabeceira de costas para a casa, assim só restara a Renan ocupar a outra que dava para os jardins.
- Espero não estar atrasado. - disse Renan ainda de pé ao lado da mesa.
- Em absoluto. Vamos começar agora que chegou. - disse tia Ruth fazendo sinal para um casal de garçons que só agora Renan percebia estarem um de cada lado da porta do terraço. Ele engoliu em seco, pois não havia imaginado que seria assim.
 Os pratos eram variados e muito saborosos. A conversa fluiu sobre seu pai, o início de seu ano letivo e seus gostos a respeito de livros e música. Os tios lhe davam o direito de ouvir o estilo de música que desejasse, desde que respeitado os horários em que eles estivessem em casa. Vez ou outra faziam uma pergunta a sua prima e ela apenas movia a cabeça ou se expressava com monossílabos quase inaudíveis.
 Quando a conversa chegou ao ponto das relações entre sexos, resolvi mudar de assunto para algo menos constrangedor.
- Os jardins são muito bonitos. É a senhora mesmo quem cuida deles?
- Às vezes quando sinto vontade, mas temos um jardineiro que cuida de tudo. Mas obrigada pelo elogio. Adoro meu jardim. - complementou ela enquanto pedia que enchesse meu copo com mais suco de laranja.
 Passado alguns minutos o silêncio voltou a reinar na mesa. Quando levantei a mão para pegar um guardanapo senti como se vários espinhos penetrassem minha pele. Catherine tinha feito o mesmo e por um instante nossos dedos se tocaram. Eu recolhi a mão rapidamente, enquanto ela levantara de um salto e sem pedir licença correu para dentro de casa. Perdi completamente o apetite depois disso. Recusei a sobremesa alegando não haver espaço para ela e tive que ouvir as desculpas de meus tios a cerca do comportamento inapropriado de minha prima à mesa. Agradeci o almoço e disse que gostaria de conhecer a cidade. Meus tios queriam que eu fosse com o motorista, mas recusei veemente alegando que gostava de caminhar.
 Recebi uma lista do material escolar que deveria encomendar numa livraria da cidade e me despedi deles com a promessa de que voltaria para o jantar. Nada mais me faria feliz do que juntar minhas coisas e fugir daquele lugar. Preferia mil vezes o alojamento masculino do colégio ou um hotel, mas meus tios ficariam horrorizados se eu mencionasse qualquer lugar que não fosse seu lar.
 A cidade era pequena, mas abrangia tudo o que eu pensava encontrar. Resolvi me livrar do incômodo de comprar os livros escolares, deixando a lista numa livraria e pedindo que fosse entregue no Solar Mrs. Vitória, onde meus tios moravam.
 Comprei um refrigerante na lanchonete Oxford e como ela estava praticamente vazia resolvi dar uma volta pelos arredores. Os prédios de pedra cinza pareciam frios por fora, mas eram quentes e aconchegantes por dentro. Resolvi descobrir o que era a Gruta do Vale e me surpreendi com uma taverna estilo medieval. Sentei numa mesa de fundo. Dali pude ver todo o ambiente. As janelas possuíam vitrais coloridos, o chão era de cimento, as mesas e cadeiras eram de madeira rústica bem desgastadas. Lampiões à óleo pendiam em correntes do teto todo em pedra. O balcão era feito de barris e o apoio de carvalho. A música era tocada por um grupo bem animado no fundo da taverna, bem próximo onde estava sentado. Amei o lugar. Aquele seria meu refúgio. A maioria dos frequentadores eram rapazes que variavam entre quinze e quarenta anos pelo seu modo de vestir e falar. Algumas moças frequentavam o local, mas estavam acompanhadas.
 Renan ficou horas bebendo e ouvindo canções irlandesas. Fez contato com os músicos e acabaram virando amigos. Dois dos violeiros estudavam na mesma escola que ele iria frequentar e a conversa seguiu com os comentários dois três sobre aulas, professores e métodos de estudo.
 Já passara da hora de voltar para o Solar e Renan muito a contragosto despediu-se dos novos amigos e voltou para o novo round com sua família. Era de se esperar que sua prima não comparecesse ao jantar, mas para surpresa de Renan ela estava presente. Catherine irradia felicidade e beleza em seu vestido azul turquesa de corte reto até os joelhos. Cumprimentou Renan quando ele entrou na sala de jantar e chegou até a lhe perguntar se havia gostado da cidade. Um olhar para o seu tio fora o bastante para Renan entender que o tempo que ficara ausente, fora gasto com uma conversa franca com a enteada. Renan não sabia no que aquela falsa cortesia iria dar, mas não se preocupou com mais nada além da hora de ir para seu quarto.
 Estava demais cansado da viajem e do encontro com seus parentes para não dormir de imediato. Renan teve pesadelos envolvendo sua prima. Ela implorava que a salvasse de algo ou alguém que ele não conseguia identificar no sonho. O choro de Catherine acabou acordando-o e Renan percebeu que o sonho se fora, mas aqueles soluços eram reais. Jogou os lençóis de lado e saiu da cama.
 Ao abrir a porta pode ouvir murmúrios e gemidos vindo do quarto de sua prima. Foi até lá e testou a maçaneta da porta. Estava destrancada. Abriu-a com cuidado e caminhou lentamente até o leito de Catherine. Quando removeu o véu que o cobria assustou-se com a expressão de pavor no rosto de sua prima. Ela também estava tendo um pesadelo e parecia estar sofrendo muito. Seus braços estavam arranhados e os lençóis bem amassados se amontoavam aos pés da cama. Seu rosto estava banhado de suor e lágrimas escapuliam de seus olhos.
 Era uma cena muito chocante e Renan não teve outra escolha senão abraçá-la com força. Ela tentou se libertar socando-lhe o peito e se sacudindo, mas as palavras de conforto de Renan logo a acalmaram.
- Shii! Está tudo bem. Foi só um pesadelo. Calma! Calma! - murmurou Renan embalando-a como a uma criança apavorada.
 A menina silenciou aos poucos e voltou a dormir agarrada ao pescoço de Renan que só a largou quando percebeu que seu sono voltara ao normal. Deitou-a novamente e a cobriu. Teve vontade de tocar o rosto frágil, mas temeu acordá-la. Não querendo se demorar muito no quarto da prima Renan voltou ao seu próprio, mas não conseguiu pegar no sono pensando no que houvera há pouco. Era muito para um único dia e a saudade de seu pai e seu antigo lar doía-lhe no peito.
 Esperava apenas que o dia seguinte fosse mais tranquilo. Sentia que alguma coisa estava errada, mas não sabia o que era. Achou melhor tentar voltar ao sono e deixar que o futuro lhe desse as respostas.

Continua...

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